Devido às suas conhecidas dificuldades em lidar com material culturalmente diverso, a Disney não fez muito pelo sucesso de «Mononoke Hime» (1997) – nº 1 nas bilheteiras do Japão até à estreia de «Titanic» –, igualmente realizado por Miyazaki, e o mau resultado nas bilheteiras poderá ter contribuído para que a companhia do Rato Mickey não tivesse adquirido os direitos universais do novo filme. Uma má opção, provavelmente, tendo em conta que «A Viagem de Chihiro» se aproxima mais do filme infantil que a distribuidora gostaria que «Princesa Mononoke» fosse, mas os cinéfilos nacionais vão certamente aplaudir o facto da distribuição não vir directamente da Disney ou da Miramax (que pega nos títulos mais “maduros”, que não se adeqúem ao espírito “para todos” da casa-mãe), pois teríamos uma provável repetição do cenário de cópias dobradas em inglês, sem opção (e alguns comentadores entretinham-se a falar da excelência do trabalho de John Lasseter). Felizmente, tal não aconteceu desta vez e podemos assistir ao filme em toda a sua glória, no japonês original e legendado em português. Sendo certo que muitas famílias ficarão felizes por poder levar os seus miúdos à versão dobrada – e estou certo que o trabalho do actores e directores de dobragem português é de boa qualidade, ainda que não me interesse particularmente –, também é verdade que «Chihiro» é um filme que é narrativamente demasiado complexo para crianças com menos de nove ou dez anos, i.e., a idade da protagonista e do público-alvo mais relevante. Uma criança que não saiba ainda ler provavelmente não terá maturidade suficiente para entender a história, prevendo-se muita interactividade pai-filho nessas projecções, que normalmente ficaria reservada para aqueloutras que “deveriam” ser dobradas, mas que afinal são legendadas (“quem é aquele?”, “ele está morto?”, “ele é mau?” “o que é que está a acontecer?” “quero fazer chichi!”)
Uma refeição saborosa, mas demasiado cara. |
Aqueles que conhecem a obra de Miyazaki não estranharão que, uma vez mais, estejamos perante uma narrativa que não segue as fases normais de introdução, conflito e resolução, nem dispõe bons e maus em dois campos opostos e delimitados. Com excepção das primeira obras do realizador japonês – «Lupin III: Cagliostro no Shiro» (1979) e «Tenku no Shiro Laputa» [Laputa: Castle in the Sky] (1986) –, o cinema de Miyazaki não mostra preocupações em apresentar “maus” claramente definidos, nem em centrar o objectivo da história na eliminação ou derrota dessa personagem, antes optando por desenvolver um percurso complexo que os seus protagonistas têm de seguir e vencer, para, de algum modo, se encontrarem, se conhecerem, ou conseguirem superar determinadas dificuldades e transitar para outra fase das suas vidas. Tal é mais facilmente sobreposto a «Majo no Takkyubin» [Kiki's Delivery Service] (1989), mas a mecânica é comum à generalidade da obra de Miyazaki. Seria fácil imaginar que se «A Viagem de Chihiro» fosse produzido no Ocidente a bruxa seria realmente má e o objectivo de Chihiro, para libertar os pais e sair da cidade, passaria por um confronto directo e pela derrota da terrível vilã. Isso é outro filme.
Yubaba não vê com bons olhos a presença de uma humana no seu estabelecimento. À dta: Sen é ajudada por Haku. |
Acima: Sen encontra um Kaonashi (Deus Sem-Face). |